Caía a
tarde quando Salazar entrou no bar. Tirou seu sobretudo e seu chapéu coco,
limpou-se da fina neve que precipitava, pendurou as roupas que não iria usar no cabide do local e se
sentou próximo à janela. O estabelecimento era simples, à moda francesa de caffé. Logo que se aconchegou, o garçom
ligeiramente o atendeu:
- O que
pede hoje, Dr. Salazar?
- Pode me
trazer uma dose de Johnny, sem gelo.
- É pra
já, Doutor – falou o rapaz, afastando-se da mesa ao mesmo tempo em que anotava
outro pedido.
Salazar
era alto e branco. Tinha olhos claros e cabelos cinza. Era claramente
descendente de europeus. Apesar da aparência senil, possuía um vigor juvenil,
como se acabasse de entrar nos louros da mocidade.
Tão cedo seu copo chegou o homem provou
um gole da bebida; ela desceu suave e flamejante pela garganta, lavando o
cansaço e irritação de um dia inteiro de trabalho.
Antes que pudesse abrir o jornal no
caderno de esportes, Salazar ouviu o sino do bar tocar – sinal de que a porta
estava a se abrir. Avistou um amigo de longa data; um companheiro fiel às
noites de sextas com quem há tantos anos dividiu mesas, gargalhadas e bebidas
na madrugada boêmia.
- Barganhas! Está atrasado homem. O
trânsito o pegou? – cumprimentou Salazar, já se levantando para dar espaço ao
amigo.
- Ora, Dr. Salazar... Este pobre coitado
foi pego de surpresa por essa tremenda nevarada! Quem diria que nesta terra
poderia nevar?! – disse o outro, limpando seu sobretudo e sua boina, repetindo
o ritual de Salazar.
Os dois apertaram as mãos. Barganhas se
sentou e acenou ao garçom:
- Guri! Ou, Guri! Traga-me uma boa dose
de Velho Barreiro. – pediu para o mesmo garçom que atendera Salazar.
Barganhas vestia roupas simples, de
trabalhador braçal. O homem era alto e viril. Aparentava carregar um pouco mais
de 20 anos de história, embora possuísse bem mais que isso. Era branco com
cabelos negros e curtos e olhos escuros.
A mesa continha quatro lugares; dois de
cada lado. Salazar sentou-se de costas para janela e encostou-se no vidro para
ler seu jornal; de modo que pudesse ver tanto Barganhas que sentou do outro
lado da mesa, de frente para a porta, quanto a entrada do estabelecimento.
No caderno de esportes, Salazar leu que
o XV de Piracicaba era campeão da Libertadores.
Mais uma vez o sino da porta soou. Uma
figura baixa e esguia entrou no boteco. Tirou o traje de frio – aquele mesmo
que os outros dois vestiam – e seu chapéu; limpou a neve e pendurou no cabide
para os clientes, próximo aos de Salazar e Barganhas.
- Vejo que só faltava eu. – disse ele,
apertando as mãos dos dois que ali se encontravam.
- Chegou em boa hora. Acabei de ler que
XV foi mesmo campeão da Libertadores... – disse Salazar, um tanto intrigado.
- Pepe, quer beber algo? – perguntou
Barganhas, acenando para o garçom.
- Quero um gole de Stock e uma porção de
fritas – pediu diretamente ao funcionário, que já se encontrava prontamente ao
lado da mesa.
- Pepe, veio da Paulista? – perguntou
Salazar.
- Sim, Doutor. Estava um caos... A neve
se acumulou da estação Consolação até a altura do Shopping Paulista.
- Caralho! – soltou o palavrão; Salazar
o fazia espontânea e corriqueiramente.
- Como pode aqui em São Paulo nevar? –
indagou Pepe. Foi uma pergunta às paredes.
O pedido de Pepe foi servido à mesa,
juntamente com a bebida que foi colocada bem na frente do pires de batatas
fritas.
Pepe era um senhor, bem mais velho que
os outros ali sentados. A vida dura já lhe dera um tempo; já alimentou seus
filhos, foi fiel à sua falecida esposa –quando ainda vivia – e se jogou na carreira
pública, sempre idôneo e honesto. Agora, aproveitava os bons momentos de sua
aposentadoria.
A internet não funcionava em lugar
nenhum e os meios de comunicação telefônicos ficaram prejudicados. A estrutura
da cidade não foi projetada para aguentar uma nevasca, como há alguns dias
acontecera. A televisão via satélite ainda funcionava, mas muito custava às
Redes se manterem operando; então decidiram passar apenas os programas de maior
audiência e os jornais. Já os canais a cabo, nem mesmo operavam.
- Pepe, ouviu o que falei? – perguntou
Salazar.
- O que? Sobre o XV? Sim, mas preferi
não acreditar. – respondeu o senhor.
- Pode acreditar, Pepe. Está aqui,
olha... – intimou-o para olhar o jornal.
Quando teve em mãos o caderno, percebeu
que o XV ser campeão da Libertadores era a menor das surpresas.
- Salazar, você viu essa notícia aqui? –
apontou para uma coluna no canto, que tinha letras miúdas; como se fosse uma
notícia de menor importância, ou até mesmo de nenhuma.
- Deixe-me ver. – puxou os óculos do
bolso para melhor enxergar aquelas letras.
Lia-se na coluna o seguinte:
Clube
de Regatas Flamengo é extinto oficialmente hoje pela sua diretoria. O Time 5
vezes campeão do Campeonato Brasileiro caiu para a série de acesso à série C e
não possuí torcida. Os jogadores faltaram ao último jogo, já que estavam jogando
apenas como hobbie e, segundo eles, compromissos mais importantes os impediram
de comparecer.
O
Presidente da CBF disse, em nota, que é uma pena que a tradição do futebol brasileiro
esteja desaparecendo; mas agora se deve dar enfoque às conquistas do XV que
tenta revigorar o esporte nacional.
- Do que se trata, Salazar? – indagou
Barganhas, curioso para descobrir o que gerou aquela cara de espanto do amigo.
- Flamengo não existe mais... A
diretoria extinguiu o time. – respondeu abismado.
Barganhas comeu uma batata e engoliu sem
pensar a bebida de uma só vez. Pasmo, recolheu-se na cadeira e ficou pensativo
por um tempo.
- Vocês não acham que tem algo errado
acontecendo? – disse Salazar, franzindo a testa.
- Não sei... Tudo aconteceu tão
naturalmente. Como as coisas chegaram a esse ponto? – questionou Pepe,
indignado.
- Que maluquice. – concluiu Barganhas.
Após o comentário, perceberam que na
loja da frente acontecia um assalto. O curioso era que o ladrão se trajava
de um personagem de histórias de quadrinhos. Todas as pessoas que passavam na rua não deram
atenção ao que acontecia bem ali; algumas até viram, mas
simplesmente ignoraram.
Os três olharam uns para os outros,
chamaram o garçom e pediram mais um pouco das respectivas bebidas.
Por um tempo, ficaram quietos, fitando
as paredes, porém com pensamentos bem além dos limites de concreto. A mesa
estava quieta como nunca antes ficara.
- É isso! Esse mundo está louco! –
sugeriu Barganhas.
- O que? – perguntou Pepe.
- É... Alguma coisa aconteceu no mundo
que ninguém sabe explicar, mas está causando essa loucura toda. – explicou.
- Louco... – sussurrou Salazar.
Essa palavra ecoou na mente dos três.
Ali permaneceram fixos, olhando para o nada e pensando sobre a palavra.
- Não, Barganhas... Acho que nós é que
estamos loucos. – disse Pepe.
- Nós três? – indagou Salazar.
- Sim. – respondeu.
- Como assim? – inquiriu Barganhas.
- Veja, lá fora, todos andam calmamente.
Aqui dentro, várias pessoas leram o caderno esportivo e ninguém achou estranha a notícia do fim de um time como o Flamengo estar exposta numa coluna no canto
de página em letras miúdas além de nós. – explicou Pepe.
- Então, por não estarmos ignorando isso
é que somos loucos? – questionou Salazar.
- Sim. – respondeu o indagado.
Os drinks
chegaram juntamente com mais uma porção de fritas. Pepe não se lembrou de ter
pedido mais fritas, mas não se importou com o erro.
- Eu não sou louco, porra nenhuma! –
reclamou Salazar, num lapso de pensamento.
- E o que é ser louco, meu caro? –
replicou Pepe.
- Ser louco... – filosofou Barganhas –
Ser louco é como olhar uma realidade que ninguém mais vê. É ver a verdade como
ela realmente é. É como olhar para uma janela que todos dão as costas.
- Ver uma janela que todos dão as
costas... – repetiu Salazar, olhando para a janela atrás de suas costas.
Beberam mais do álcool que foi servido e
comeram mais da gordura oferecida. Observaram bem o garoto que os serviu, que
distraído limpava o copo que acabara de pegar da outra mesa.
Os três ficaram alguns segundos olhando
para janela pensando em toda aquela situação.
- Se lembram de quando foi que começou a
nevar em São Paulo? - perguntou Pepe.
- Não foi ontem? – tentou Barganhas.
- E que dia é hoje? – disse Pepe.
Na tentativa de responder a questão,
Salazar procurou no jornal o cabeçalho. Não havia data no jornal.
- Será que somos mesmo os loucos? –
indagou Salazar, bastante assustado.
- Não sei... – falou Pepe – Quem garante
que somos reais? Quem garante que você não é uma projeção fictícia do meu
cérebro ou eu sou uma projeção do seu?
“As
batatas fritas estão muito boas” pensou Barganhas. Olhou para cada uma
delas e se perguntou se o sabor de todas elas era real. Todos aqueles
acontecimentos não faziam sentido, nada tinha uma explicação lógica. E
Barganhas só conseguia pensar em como aquelas batatas fritas estavam saborosas.
- É certo, então... – concluiu Barganhas
– Nós é que somos loucos.
- Sim. – concordou Pepe.
- Ok. – corroborou Salazar.
- O que faremos então? – problematizou
Barganhas.
Todos se entreolharam e beberam mais um
gole de seus drinks. As fritas
acabaram e a neve se intensificou.
- Não podemos apenas aceitar a loucura?
– questionou Salazar.
- Acho que sim. – disse Pepe.
- Aceitemos a verdade, então. –
determinou Barganhas.
Após alguns segundos de silêncio, a luz
do bar se apagou; um breu tenebroso se alastrou pelo local. Uma luz se acendeu
em cima dos três amigos, mas suas roupas estavam diferentes; viram-se cada um
com uma camisa branca e calça igualmente branca.
A mesa também foi iluminada, mas agora
não era mais de madeira, e sim de metal; as pontas eram redondas e a superfície
era fria e cinza. Via-se em cima dela um amontoado de copos descartáveis
jogados e alguns remédios espalhados.
Logo o ambiente todo se iluminou; os
três amigos viram-se numa cantina de hospício. Sentiram-se aterrorizados com o
que se passava.
- O que significa isso?! – questionou
Salazar, esperando uma resposta sincera.
- Acho que é isso mesmo. Nós é que somos
loucos! – constatou Pepe.
- Estávamos todos na mesma alucinação? –
perguntou Salazar – Isso é possível?
- Não, meus caros... Acho que aquela era
a mesma realidade. Essa aqui é que é uma farsa. – afirmou Barganhas.
De fato, aquela verdade os incomodava.
Preferiam voltar à inexplicável São Paulo à viver a realidade sombria e exata a
que foram apresentados.
- E então? O que faremos? – indagou
Barganhas.
Logo entenderam que os drinks eram os líquidos que tomaram e as
fritas eram os remédios. Certo ou errado viveram até ali dentro de uma ilusão.
Por mais que fosse apenas uma distorção daquela realidade, era mais cômodo
quando apenas bebiam e gargalhavam juntos.
- Eu não sei... – disse Salazar – Apenas
sei que isso é loucura.